
Em miúdo, uma parte das "férias grandes" era passada em Tomar, em casa dos meus Avós. A viagem de combóio tinha um ritual próprio. Iamos com a roupa de ver a Deus, meticulosamente penteados (um risquinho de esquadria) e levávamos um farnel que era gerido pela minha irmã Maria. Por vezes faziamos essa viagem com alguns primos, Manel e Catarina, com quem nos reencontravamos nas férias de Verão e no Natal. A viagem era longa, creio que nessa altura o combóio ainda fazia paragem em todos os apiedeiros. Lembro de ouvir uma voz estridente que anunciava a nossa chegada às estações de Vila-Franca, Santarém e Entroncamento. Debruçavamo-nos nas janelas e viamos um batalhão de pessoas a embarcar com malas, sacos e garafões de vinho. Em Santarém entravam magálas a granel. Faziam uma algazarra dos diabos. Bebiam cervejas, fumavam e metiam-se com todas as miúdas que aparecessem pela frente.
Chegados a Tomar, aguardava-nos o "Senhor Graça", choffeur de Praça que os meus Avós haviam promovido a motorista da família há mais de 15 anos. O Senhor Graça, tinha uma barriga considerável e nunca se desfazia de uma boina aos quadrados esverdeada. Os seus préstimos eram utilizados na ida às compras e idas ao médico e, não menos importante, para ir buscar os visitantes de Lisboa. Nessa altura, ser da capital era como jogar na Champions League. As pessoas olhavam-nos de alto a baixo e quase que nos deixavam passar à frente em tudo o que era sítio.
E lá estava ele às 18.30, sempre pontual, com o seu mercedes verde e preto a brilhar à porta da Estação. No porta bagagem arrumávamos as espingardas de pressão de ar, embrulhadas em papel pardo, as canas de pesca e as malas.
Quando iamos só rapazes no carro a viagem era mais divertida. O Graça fazia 3 paragens em tabernas até à fabrica de papel do Prado. Entregava encomendas e oferecia-nos umas tacinhas de branco que tinhamos que virar de um só trago, com o dedinho esticado, a emitar o artista. Batia com as moedas com toda a força contra a bancada de marmore encardido e pedia uma nova rodada "para mim e para estes senhores". Era uma espécie de rito iniciático, para meninos "copos de leite" que tinham entre os 12 e os 15 anos. Demorávamos mais ou menos 1.30 a fazer 30 kms.
Como não devia querer sarilhos com a minha Avó, também eramos presenteados com umas pastilhas gorila. Como é óbvio, nunca quebrámos este pacto de silêncio e riamo-nos das estorietas picantes do Graça e das escarretas que amandava pela janela, enquanto passava um paninho verde pelo tabelier.
Chegados ao nosso destino, entregava-nos à nossa Avó, que nunca desconfiou dos nossos olhinhos brilhantes, e depositava nas mãos do meu Avô o Jornal de Tomar, O DN e os desportivos. Era o início de uma grande aventura.
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